Um drama sério está acontecendo diante de nossos olhos em toda a indústria brasileira, e vou examinar esse fenômeno num exemplo concreto, para ficar bem claro: a indústria automobilística brasileira. Ela é formada por uma enorme cadeia de fornecedores de matérias primas, componentes e sistemas, além das empresas produtoras de máquinas e equipamentos. Isso na etapa pré-montagem de veículos. Depois entra ainda uma enorme rede de revendedores de veículos e um sem número de fornecedores de serviços, o que inclui setores financeiro, alimentício, de transporte e segurança, entre outros.
Devido à pandemia do novo coronavírus, o isolamento social está trazendo um impacto brutal na capacidade deste sistema em prover a sustentabilidade de todas essas empresas, e consequentemente dos empregados da cadeia automotiva.
Vamos verificar esse fenômeno num exemplo prático: em um ano sem crises como essa são produzidos de 2,6 a 3,0 milhões de veículos, ou seja, a cada dia, 7,8 mil veículos saem das linhas de montagem das fabricantes nacionais. O “lockdown” provocado pela Covid-19 fez esta engrenagem ser interrompida abruptamente. Na última semana de março, a venda de carros novos girou em torno de 70 a 100 unidades por dia, uma queda de 99%. As exportações também evaporaram, dada a dimensão global da crise.
A questão é que a indústria automotiva e seus fornecedores, tanto diretos quanto indiretos, empregam um volume enorme de capital de giro. Portanto, a queda imediata da receita na venda de veículos gera um efeito dominó em todo o sistema, impactando de forma imediata a capacidade para pagamentos de obrigações e funcionários.
Mesmo com o “lockdown” sendo gradualmente retirado a partir de maio próximo – numa visão bem otimista –, a retomada do comércio de veículos será lenta, de maneira que somente em junho ou julho haverá alguma nova receita para os “players” desse setor. Ou seja, estamos falando de aproximadamente três meses sem receita e uma perda estimada de R$ 40 bilhões de entrada no caixa das montadoras. Essas ficarão um bom tempo sem repassar aos demais elos da cadeia, gerando total incapacidade de pagamento dos seus compromissos.
Para os fornecedores de autopeças a situação é igualmente dramática, já que com condições de pagamento de 30 a 60 dias, em média, essas empresas têm recebíveis contra as montadoras que vencem já em abril. Assim sendo, as montadoras teriam de bancar com seu próprio caixa os pagamentos de fornecedores que já entregaram suas peças na ordem de R$ 9 bilhões neste mês. Dinheiro que, sem medo de errar, nenhuma montadora no Brasil tem disponível, já que elas sua reserva de caixa está sendo usada para honrar compromissos com seu grande quadro de funcionários.
Como essa situação dramática é a mesma em praticamente todos os países onde se encontram as sedes das principais montadoras do Brasil, a falta de liquidez é a mesma. Sem o socorro providencial das matrizes, como ocorreu na recessão brasileira de 2016 e 2017, não me parece plausível imaginar que as montadoras locais teriam caixa para honrar todos esses compromissos.
Me perdoem pela forma direta, mas temo ter de dizer que a indústria automotiva nacional poderá “quebrar” nas próximas 4 a 6 semanas. Então, o que podemos fazer para evitar esse caos? Como sociedade, vamos precisar criar uma ponte de emergência para este setor que emprega mais 1,2 milhão de trabalhadores no Brasil, com empregos formais e qualificados.
A solução deve considerar um aumento de liquidez através de empréstimo emergencial por parte dos bancos públicos (BNDES e Caixa), da ordem de R$ 80 bilhões para a as montadoras, com o propósito de cobrir de 3 a 5 meses desta ruptura estrondosa no caixa das empresas. O BNDES poderia repassar este crédito rapidamente para os bancos privados e em seguida agir como o “back stop”, garantidor dos primeiros R$ 4 bilhões a R$ 7 bilhões do risco (baixo) de perdas, agilizando ao máximo o processo de concessão de crédito.
Com essa injeção de liquidez, o setor poderia manter a adimplência e crédito de toda a longa cadeia automotiva, evitando uma quebradeira em série. Lembrando que o “efeito dominó” se inicia nas matérias primas básicas e termina nas redes de concessionárias, locadoras e milhares de oficinas que, sem peças, não conseguiriam mais dar manutenção à frota de caminhões e veículos que transportam mais de 90% de nossa economia.
Sem essa ponte, vamos assistir a um dramático processo de judicialização dos pagamentos entre os elos da cadeia, demissões em massa e o gradual, mas inevitável, colapso da rede de transportes no país. A urgência não poderia ser maior. Com a palavra, a equipe econômica que já tem uma lista hercúlea de desafios, mas que terá de “matar mais um leão” o mais rapidamente possível.